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Oficina dos Baixinhos* - Blog sobre o hobbie LEGO® de um AFOL (Adult Fan Of LEGO) português. Relatos das construções, técnicas, críticas, pensamentos e afins sobre LEGO em Portugal e no mundo. *Antiga LegOficina
Marcos Bessa não foi o primeiro designer português na LEGO mas é provavelmente o mais conhecido junto dos fãs. Começou a ser conhecido na Comunidade 0937 como um excelente construtor de MOCs (ver galeria aqui). Em Setembro de 2010 inicia funções na LEGO e não demora muito tempo para o seu trabalho ser notado junto dos fãs. A natural evolução dentro e fora da empresa dá origem não só a vários sets memoráveis como uma linha da sua responsabilidade, os BrickHeadz.
O lançamento do 71044 Disney Train And Station é a desculpa perfeita para iniciar mais uma entrevista com um LEGO Designer. Não só para saber mais sobre este conjunto, mas também para divagar por vários assuntos que só a AFOLs é que interessam! :)
LB O conjunto 71044 Disney Train and Station é, quanto a mim, um quanto inesperado. Não está na crista da onda de nenhuma moda atual como um determinado filme ou série de TV. Qual é a origem da ideia para criar este set? Foi proposta da Disney ou partiu mesmo de uma equipa ou de alguém da LEGO?
Sim, existem teorias da conspiração a correr nas redes sociais que é baseado num obscuro projecto que está algures no Ideas. Mas eu duvido que o pessoal da LEGO tenha tempo e pachorra para andar a percorrer a pente fino a plataforma, principalmente as ideias que ficam pelo caminho.
MB Quando começámos a trabalhar no design do Castelo (71040), em 2015, falou-se logo na hipótese de iniciarmos com ele uma série de sets inspirados em elementos temáticos e icónicos dos parques da Disney. Obviamente que com isto não estou a dizer que vão ou não sair mais sets nesta linha, mas como em todos os projectos em que trabalhamos, discutimos sempre muito mais à frente daquilo que estamos a planear no imediato, para a eventualidade de querermos vir a fazer um “follow up”. O Castelo teve e continua a ter bastante saída e tem sido um conjunto de grande sucesso, demonstrando o tamanho e apreço da comunidade de fãs deste mundo mágico da animação. E na altura, o set 71040 foi lançado no seguimento da primeira série de minifiguras Disney. Quando iniciámos o planeamento da segunda série, começámos também o diálogo com a Disney à volta do que poderíamos criar como sucessor ao Castelo. E embora tenhamos discutido outras ideias bastante interessantes, a Disney foi desde o início da opinião de que o próximo conjunto devia consistir na recriação do mais reconhecível comboio presente em alguns dos seus parques espalhadas pelo globo. Depois, entre os membros da equipa LEGO, discutimos sobre qual a melhor forma de executar a melhor e mais completa experiência à volta deste comboio. Foi por isso que optámos por incluir uma pista completa de carris (20 peças), os acopladores magnéticos e uma estação - inspirada nos edifícios da Disneyland California e Hong Kong. Desta forma, qualquer fã de comboios, fã de LEGO, fã da Disney - ou dos 3 - pode adquirir o mais completo set de comboio a vapor, num conjunto que lhe sairá certamente mais barato do que se tivesse de comprar os diferentes componentes separadamente. Na minha óptica, é um presente de Natal perfeito para colocar debaixo da árvore: antes e depois da troca de prendas!
LB A tua resposta é tão completa que responde à pergunta que estava a pensar em fazer a seguir. Se este set (o 71044) era a confirmação que estamos perante uma nova série de conjuntos que irão representar algumas das estruturas mais conhecidas dos parques Disney. Sou cada vez menos apreciador de sets com IPs, mas agrada-me sempre que a LEGO faça séries de conjuntos ao longo do tempo (Winter Village, Modulares, etc) que funcionem em conjunto, principalmente a nível de escala.
Um dos pontos altos deste conjunto é a introdução de peças em novas cores, nomeadamente as slopes em medium dark flesh (aconselho os leitores a lerem esta excelente análise no New Elementary). Sabendo que a capacidade de armazenagem da LEGO não é infinita, a introdução de novas peças leva, inevitavelmente, à "descontinuação" de outras.
Sentes algum peso na consciência quando tens que decidir sobre a entrada de uma nova peça/cor num set sabendo que provoca a saída de circulação de outras peças?
Já agora, a opinião dos designers em geral tem algum peso nessas decisões? (entrada e saída de peças).
MB Na verdade o processo é relativamente automático e indolor. Todos os anos o catálogo da LEGO é actualizado, com produtos novos a serem lançados e outros que saem de circulação. Os que saem de circulação têm muitas peças em determinada cor que estão em produção exclusivamente para esses sets, e se - por exemplo - há 100 peças que estão em produção apenas em sets que estão destinados a sair de circulação no final 2019, então para as novidades de 2020, as equipas de design têm 100 novas oportunidades de criar uma peça numa cor nova, ou uma nova decoração. Há mais factores e detalhes envolvidos neste processo, mas basicamente é mais ou menos assim que se determina que combinações peça-cor são retiradas de produção. Este processo às vezes leva a situações - bastante comuns! - em que na verdade o designer usa uma série de alterações de cor de peças que os fãs não identificam como “novidade”, porque a peça já esteve em circulação nessa cor a determinada altura, mas porque entretanto saiu de circulação, tivemos de voltar a “pagar” para ter essas peças nessas cores. Já quando se trata de retirar peças de circulação - o design, independentemente da cor - o processo é diferente e envolve uma série de pessoas que determinam que peças não fazem mais falta na nossa colecção de peças activas. Nesse processo nós designers temos um papel activo e votamos nas que menos nos fariam falta.
LB Um ponto que levanta sempre alguma contestação junto dos AFOLs é a presença de autocolantes. Sabe-se que a utilização dos autocolantes é muito mais barata que a de peças impressas, no entanto existem algumas coisas que confundem os fãs. Por exemplo, neste conjunto temos (novas) peças impressas e autocolantes. Como é que se escolhe que determinado pormenor vai ficar em autocolante ou vai ser impresso directamente na peça?
MB Há determinadas peças - como o disco 4x4 onde está impresso o relógio usado na fachada - que não podem levar autocolantes. São peças que têm “dupla curvatura” e um autocolante ficaria sempre com dobras se o tentasse colocar numa superfície como esta. Aí fica logo decidido: se precisamos de uma decoração numa destas peças, tem se ser impresso ao invés de autocolante. No caso da “tile 2x3” com a caixa do Castelo, foi uma decisão pura e simplesmente pelo desejo de oferecer algo mais exclusivo e especial neste set, como se a cereja no topo do bolo se tratasse. O número de impressões nas peças é gerido como as alterações de cores. Há um limite de cores/decorações que podemos gastar a cada ano, e estas são atribuídas aos diferentes projectos/produtos ainda antes destes serem criados. E nesse número estão também incluídas todas as novas decorações criadas para as minifiguras. Portanto, no meu caso, eu até podia ter usado mais peças impressas, mas além do custo extra que não é marginal, também teria de usar outra cor para o telhado que estivesse disponível em vez da cor que usei. É sempre uma ginástica que precisa de ser feita, entre compromissos e avaliação daquilo que realmente trará “novidade” e “valor” ao conjunto. Em alguns casos, o uso de autocolantes é preferível também pelo facto de permitir que as decorações sejam opcionais ou “customizaveis”. Além de tudo isso, não temos nenhum limite no número de autocolantes que podemos colocar num conjunto - além do custo, claro está.
LB Deve ser interessante todo esse processo que fica além do esperado desenho de um conjunto. Porventura decisões que até influenciam outros sets além daquele que está em cima da secretária.
Pelo que me lembro também estiveste envolvido no desenho de novas peças. Se o processo de desenho de peças específicas de temas (por exemplo as cabeças dos minifigs do 71044 ou os acessórios dos minifigs do MineCraft) deve ser mais ou menos pacífico já que, em princípio, não vão ser utilizados noutros temas. Como se processa o desenho de uma peça "mais básica"? Uma peça que, em princípio, vai ser ou pode ser utilizada em qualquer tema LEGO.
MB Dentro da Lego há uma entidade chamada “EDSG”, ou “Element Design and System Governance”, que age como “guardiã do sistema”. Estes profissionais asseguram que todas as peças criadas encaixam no sistema da melhor forma, sem esquecer diferentes parâmetros como a sua durabilidade, a usabilidade e facilidade como estas peças virão a ser produzidas em massa nas nossas fábricas. Quando se trata de peças mais genéricas, com maior hipóteses de virem a ser reutilizadas em outros produtos, é comum darmos uma volta à casa a pedir opiniões a outros designers. Além disso, temos também uma parede onde estão sempre dispostos todos os protótipos de peças em diferentes estados de desenvolvimento, para que todos os designers estejam a par do que está a ser desenvolvido, e inclui até um cantinho para os “discos pedidos”, ou peças com as quais alguém tem sonhado mas que ainda não encontraram um projecto para as lançar.
LB Bem, como AFOL adoraria ter uma imagem dessa parede. :)
Sim, eu sei que compreensivelmente está fora de questão.
Tens alguma peça predilecta? Daquelas que não consegues deixar de utilizar num projecto teu porque achas que te permite aquela técnica especial, porque é extremamente versátil ou porque simplesmente lhe ganhaste um carinho especial?
MB A primeira peça que me vem à cabeça é a “jumper plate 1x2”, porque me permite saltar fora da grelha tradicional, e com isso adicionar detalhe às minhas construções. Como, por exemplo, quando construo uma janela e a coloco meio módulo puxada para dentro, criando um resultado muito mais realista e interessante do que se a colocasse alinhada com a parede ou até um módulo inteiro atrás.
LB Algo que tenho sentido enquanto estou a construir sets grandes (e por norma mais direccionados a adultos) é a quantidade de técnicas ousadas. Técnicas de construção por norma originais e que puxam mesmo o limite do que se pode fazer com as peças LEGO.
Isso torna muitas vezes a montagem do set uma experiência única para um AFOL como eu que adora o processo de construção e criação.
Consegues explicar-me porque é que existem cada vez mais conjuntos assim? Se está ligado de alguma forma a um público mais exigente ou talvez à presença de vários AFOLs como designers? É que às vezes dá a impressão que há uma competição interna para ver quem consegue colocar a técnica mais ousada numa caixa de LEGO!
MB Haha... que eu saiba, não há competição nenhuma a decorrer! Há, no entanto, um imenso talento na equipa de design da LEGO! E muito dele vem justamente da comunidade AFOL, com mais e mais designers contratados nos últimos anos que construíam antes enquanto hobby. E isso é fantástico para os produtos que colocamos no mercado, porque vamos constantemente provando que há sempre algo novo que se pode fazer com as peças LEGO.
LB Oh. Então aquela visão romântica de um LEGO Designer AFOL, rodeado de colegas a fazerem poses agressivas, a encaminhar-se para a secretária de LEGO Designer Não-AFOL com um set nas mão cheio de técnicas originais e depois cantar qualquer coisa, mostrar peito e acabar com um passo de dança (tipo as músicas norte-americanas para adolescentes) não tem razão de ser :/
Nem o placard AFOLs 10 vs Não AFOLs 3
Há 10 anos atrás eras um comum mas talentoso AFOL. Foste contratado pela LEGO e o teu trabalho foi começando a ser reconhecido. Hoje em dia qualquer AFOL (e não precisa ser grande conhecedor) sabe o teu nome e consegue enumerar alguns dos teus sets.
Como reages a isso? Seres, de alguma forma, um ídolo num hobby que já foi o teu.
MB Fico muito feliz sempre que alguém demonstra apreço ou admiração pelo meu trabalho. Sempre tive os meus próprios ídolos e vejo neles fontes de inspiração inesgotáveis. Quando era “apenas” um AFOL em Portugal, olhava para o trabalho do Jamie Berard, por exemplo, e babava... e hoje uns metros apenas separam as nossas secretárias! Honestamente, é estranho parar agora e pensar que alguém por esse mundo fora olha para mim e o meu trabalho da mesma forma que eu via o trabalho do Jamie, ou do Nicholas Groves (designer do Medieval Market). Mas é um sentimento bom. Deixa-me orgulhoso, agradecido e com uma espécie de senso de responsabilidade para continuar a fazer o melhor que conseguir. E espero continuar a inspirar muitos construtores por esse mundo fora! Se assim for por muitos anos, levarei desta vida a certeza que valeu a pena cá passar.
LB Posso estar errado, mas pelo que me lembro não tens nenhum set grande sem ser licenciado. Alguma razão em especial?
MB O Santa’s Workshop (10245) não conta? :)
A única razão por trás de tal curiosidade é simplesmente o facto de ter sido contratado há 9 anos para integrar a equipa de design dos IPs e até hoje não quis mais sair de onde estou. Acho que a minha melhor qualidade enquanto designer está justamente na recriação de algo existente em peças LEGO e por isso tenho me mantido em projectos onde posso dar o melhor de mim. Adoro o desafio de captar o maior nível de detalhe possível do material de referência (seja ele um script, um vídeo, fotos ou rascunhos) e reproduzi-lo em peças LEGO.
LB Falhou-me esse. :)
Antes de ter perguntado, deveria ter consultado a lista dos sets desenhados por ti (https://marcosbessa28.wixsite.com/home/lego).
Há um par de anos atrás quando comecei a estar mais atento aos jogos de tabuleiro modernos achei muito curioso que todos eles eram assinados. Ou seja, os autores eram conhecidos e tinham o nome escarrapachado na própria caixa do jogo. Portanto é normal ouvir nas conversas dos boardgamers algo como "Já jogaste o último do Stegmaier?", "Temos que experimentar um Vital Lacerda*" ou "O Reiner Knizia este ano foi novamente nomeado para o Spiel des Jahres!".
Ainda há mais anos atrás (provavelmente 2006-07) estava muito interessado em saber quais os sets que cada um dos designers desenhava. A ideia era perceber estilos, seguir linhas de evolução, etc. Algo normal para um fã da marca. Na altura perguntei a alguém da LEGO (Jan ou Jake McKee, não me lembro) e na altura a resposta foi algo do género. A LEGO tenta não promover os nomes individuais mas sim o trabalho da empresa. Revelar os nomes dos designers responsáveis de cada set iria levar os fãs a apreciarem o trabalho de x ou y e não da marca.
Entretanto as coisas evoluíram e muito. Por um lado temos designers que são AFOLs. Por outro lado temos muitos mais AFOLs que desejam saber mais. A LEGO acompanhou, e bem, essa evolução e agora já é normal sabermos pela própria empresa (vídeos) quem desenhou alguns dos sets, principalmente os grandes.
Mesmo sabendo que os sets não são um trabalho apenas de um designer (exactamente como os jogos de tabuleiro), será que num futuro iremos ter sets assinados? Algo como um tema com sets de autor?
Eu sei que não podes falar de produtos futuros, mas como acho isso tão hipotético, não resisti perguntar :)
MB Muita introdução para uma pergunta que vai ter uma resposta bem curta: não sei. :)
Honestamente acho difícil a empresa vir a mudar drasticamente a sua atitude neste aspecto. Como dizes, houve uma ligeira mudança, com a contratação de fãs e com a natural mudança dos tempos: “social media” coloca todos mais próximos uns dos outros - inclusive empresas e os seus consumidores - e o acesso à informação apenas encoraja curiosidade por saber ainda mais... o que leva então aos Designer vídeos, ou artigos nos livros de instruções e coisas assim... mas acho que ficaremos por aí.
LB Como última pergunta e misturando um pouco aquilo que sei que é também uma paixão tua, enquanto constróis (seja criando sets ou MOCs) ouves música? Não queres partilhar uma playlist (Spotify ou outra)?
MB Sim, ouço muita música sempre que estou “in the zone”, a construir. Por acaso já me passou pela cabeça começar a anotar - só pela curiosidade - as músicas que ouço quando desenho determinado set, mas na hora, quando estou completamente imerso na construção, acabo sempre por me esquecer de o fazer. Uso o Spotify e a maioria das vezes escolho mesmo uma das “daily mixes” ou “new releases”, porque gosto de descobrir música nova. Mas esta semana tenho construído ao som de “Musicals!!!” (https://open.spotify.com/user/annacillio/playlist/5Tb3MAlq7coUvaJ83p1AbQ?si=_ucRGvXnRsu2ntvTdeTwmg).
Com esta resposta, espero que playlist desperte a veia criativa a alguém!
Antes de terminar devo um grande obrigado ao Marcos Bessa por aceder a esta longa entrevista que, espero eu, enriqueça os conteúdos em português para AFOLs. Não é difícil de imaginar que o sucesso do Marcos vai continuar mas esperamos que continue a lançar conjuntos com técnicas cada vez mais avançadas e peças interessantes!
Esta é a segunda entrevista que faço aqui no blog (podem ler a primeira ao César “CesBrick” Soares aqui) e começo a pensar se não poderia continuar com uma série. É uma boa forma de aprender mais sobre o hobby LEGO